298: Saúde, Cultura e Arte - Cuidado e Cultura
Ativador: Leiliana Rodrigues
Data: 31/10/2020    Local: Sala 16 - Távolas de trabalhos    Horário: 08:00 - 10:00
ID Título do Trabalho/Autores
9405 IMAGENS QUE BANZEIRAM: DAS CANOAS RABETAS A UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE FLUVIAL, AS EMBARCAÇÕES COMO DIMENSÃO DO ACESSO EM SAÚDE NO TERRITÓRIO LÍQUIDO DE TEFÉ, AMAZONAS
Josiane de Souza Medeiros, Júlio César Schweickardt, Fabiana Mânica Martins, Maria Adriana Moreira

IMAGENS QUE BANZEIRAM: DAS CANOAS RABETAS A UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE FLUVIAL, AS EMBARCAÇÕES COMO DIMENSÃO DO ACESSO EM SAÚDE NO TERRITÓRIO LÍQUIDO DE TEFÉ, AMAZONAS

Autores: Josiane de Souza Medeiros, Júlio César Schweickardt, Fabiana Mânica Martins, Maria Adriana Moreira

Apresentação: “Vou remando nas águas barrentas do rio, vou [...]Eu e minha canoa, história de amor. Vou pescar esperança, seja onde for [...] Remar é preciso...”, “Vai um canoeiro, nos braços do rio [...] Já vai canoeiro, nas curvas que o remo dá, já vai canoeiro [...] Enfrenta o banzeiro nas ondas dos rios. E das correntezas vai o desafio, já vai canoeiro...”. Início a escrita com as letras das toadas dos Bois Garantido e Caprichoso enaltecendo a importância das canoas no território líquido da Amazônia, especialmente num trabalho que fala sobre o acesso em saúde. Este texto é fruto da inserção e vivências dos autores no território de Tefé, Amazonas, onde estão realizando a pesquisa denominada “O acesso da população ribeirinha à rede de urgência e emergência no Estado do Amazonas” do Programa de Pesquisa em Saúde para o SUS (PPSUS). A referida pesquisa tem como objetivo analisar o acesso da população ribeirinha à Rede de Urgência e Emergência (RUE) no Estado do Amazonas, tendo em vista o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) através da inclusão e da continuidade dessa população aos serviços de saúde. A pesquisa está sendo conduzida pelo Laboratório de História, Políticas Públicas e Saúde na Amazônia – LAHPSA/Fiocruz Amazônia. Este trabalho tem como objetivo mostrar os diferentes tipos de embarcações utilizadas pela população ribeirinha para produzir cuidado e acesso em saúde no município de Tefé. Desenvolvimento: As embarcações que descrevemos foram selecionadas no decorrer das viagens dos pesquisadores no trabalho de campo, no ano de 2019. A primeira viagem aconteceu no período da vazante e a segunda quando os rios estavam extremamente secos. No deslocamento das pesquisadoras entre Manaus-Tefé-Manaus o primeiro barco é o do nosso transporte, depois outros aparecem como no acompanhamento em ato do processo de trabalho dos profissionais de saúde, nos encontros com os ribeirinhos e nos fluxos das pesquisadoras in-mundas no território líquido de Tefé. As embarcações são as seguintes: a) canoas – embarcação de pequeno porte, feita de madeira, com uma quilha na parte de trás para auxiliar na direção, o deslocamento das canoas é feito por meio do remo; b) canoas rabetas – são canoas com mais de 3m que dispõe de motor geralmente de 5hp com eixo de aproximadamente 2m e uma pequena hélice na ponta; c) lanchas de pequeno porte – São construídas em material de alumínio que deixa a embarcação leve facilitando o seu deslize sobre as águas, variando bastante em suas características físicas e potências. Estruturalmente podem ou não ter cobertura, paredes, bem como apresentam diferentes tamanhos. Em relação a potência, o motor pode ser de 15 a 60hp; d) barcos de grande porte - conhecido como recreio é um dos principais meios de transporte na região amazônica. Geralmente são construídos a partir de uma combinação de materiais como madeira, ferro, aço, fibra de vidro e alumínio. Podem ser constituídos de vários andares, onde no primeiro andar fica a parte administrativa do barco, a cozinha, e as diversas cargas. Nos andares superiores sãos destinados para acomodação dos passageiros, onde ficam os camarotes que são pequenos quartos com camas e ar condicionados. Entre tripulação e passageiros, esse tipo de embarcação transporta aproximadamente 600 pessoas; e) Ajatos – são lanchas rápidas que se popularizaram na região Amazônica a partir dos anos 2000 por serem constituídas para receberem máquinas potentes, fazendo com que as viajem sejam feitas num tempo menor que os barcos; f) Unidade Básica de Saúde Fluvial (UBSF) – é uma embarcação de dois andares construída em ferro semelhante a estrutura de uma UBS tradicional. O primeiro andar conta com sala de espera, sala de procedimentos, sala de vacina, sala para material de limpeza, consultórios médicos, odontológicos e de enfermagem, laboratório, farmácia, lavanderia e banheiros. No segundo andar, a embarcação dispõe de comando, camarotes para acomodações da equipe de saúde e tripulação, copa, cozinha, refeitório e salas para atividades coletivas. As imagens registradas dos tipos de embarcações citadas foram complementadas com as narrativas dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) que atuam nas 5 (cinco áreas) de saúde ribeirinha de Tefé, com o intuito de imprimir sentidos às imagens em relação ao acesso aos serviços de saúde. Resultado: Para quem não vive o território líquido de Tefé e olha alguma das imagens das embarcações no meio de algum rio, dificilmente conseguem compreender a importância que elas têm no acesso a saúde da população ribeirinha, mas quando essas imagens carregam a força das narrativas dos trabalhadores de saúde tem-se a compreensão e o significado da sua importância na produção do cuidado e da vida. Embora a descrição das embarcações acima tenha sido feita numa ordem de tamanho, isso não reflete numa ordem de importância, nesse cenário uma canoa não é mais ou menos importante do que uma UBSF, isso fica claro quando os ACS narram que quando os rios estão secos a UBSF pelas suas dimensões físicas não consegue chegar as comunidades e a principal forma de acesso se dar pelas canoas ou pequenas lanchas, já quando os rios estão cheios a UBSF atraca na comunidade dispensando o uso da canoa no deslocamento do usuário. Nesse cenário onde as práticas de saúde são constantemente cortadas pela dinâmica dos ciclos das águas, as embarcações assumem poder de uso diferenciado. As lanchas de pequeno porte, por exemplo, por serem constituídas em alumínio galvanizado apresentam características que facilitam o acesso pelos “furos”, igapós, ressacas e igarapés, além de serem mais rápidas que as canoas rabetas. Os barcos por suas características se deslocam mais lentamente podendo levar quase 3 dias de viagem no trecho de Tefé a Manaus, devido a isso, transportam os principais equipamentos, máquinas, aparelhos e insumos utilizados nos serviços de saúde, como os enormes cilindros de oxigênios. Além disso, são os barcos que os usuários geralmente utilizam quando precisam fazer atendimento de saúde eletivo em Manaus. Os Ajatos por serem extremamente rápidos são mais utilizados na remoção e nos atendimentos de urgências e emergências de Tefé a Manaus. A UBSF no período da cheia pode fazer viagem de até 20 dias ampliando o acesso a população ribeirinha, já que dispõe dos mesmos serviços que uma UBS tradicional com o ganho de o usuário não precisar se deslocar até a sede do município. Considerações finais: Essa diversidade de embarcações e seus fluxos nos rios amazônicos revelam um verdadeiro mosaico de como se dá o sistema de transporte hidroviário neste território, as características do tipo de embarcação como a potência do motor, o material em que é constituído, o tamanho, a finalidade, o que transposta, revelam que estas são pensadas para atender as necessidades econômicas, sociais e de saúde das pessoas, bem como as características geográficas do território. Desse modo, pensar essas embarcações como dimensão do acesso à saúde é pensar em políticas e práticas de saúde mais próximas da realidade das populações ribeirinhas.

9541 O MAPA FALANTE COMO INSTRUMENTO DE PESQUISA PARTICIPANTE NO TERRITÓRIO DA AMAZÔNIA: RELATO DE EXPERIÊNCIA
Ana Elizabeth Sousa Reis, Thalita Renata Neves Guedes, Júlio Cesar Schweickardt

O MAPA FALANTE COMO INSTRUMENTO DE PESQUISA PARTICIPANTE NO TERRITÓRIO DA AMAZÔNIA: RELATO DE EXPERIÊNCIA

Autores: Ana Elizabeth Sousa Reis, Thalita Renata Neves Guedes, Júlio Cesar Schweickardt

Apresentação: Os agentes comunitários de saúde (ACS) que compõem a equipe da estratégia de saúde da família enfrentam desafios diários no território amazônico. Muitas adversidades ultrapassam circunstâncias ainda não superadas pelo modelo único desenvolvido por gestores em saúde. A fim de compreender a produção do cuidado e os desafios na organização deste território, oferecemos encontros participativos utilizando o instrumento do mapa falante. Tal abordagem é um método criativo que privilegia as atividades em grupo e oportuniza a construção de um conhecimento compartilhado. Este resumo é um relato de experiência de encontros realizados entre pesquisadores e agentes comunitários na comunidade rural Agrovila São João Batista do Mocambo do Arari que está localizada a 60 km de distância do município de Parintins, no Estado do Amazonas. O distrito de saúde do Mocambo, como é chamado, tem uma população estimada de 10 mil habitantes, segundo IBGE, e sua área territorial é composta por quatorze (14) comunidades rurais, quais sejam: Agrovila de São João Batista, Nossa Senhora de Lurdes, São Tomé, Santo Antônio, São Pedro, Remanso, Monte Sinai, Anjo da Guarda, Arquinho, Costa do Arco, Borralho, Guaribas, Saracura, Ilhas das onças. É um trabalho fruto de pesquisa realizada pelo projeto “Acesso da população ribeirinha à rede de urgência e emergência no Estado do Amazonas” aprovado pelo comitê de ética e desenvolvido pelo Laboratório de História, Políticas públicas e Saúde na Amazônia - LAHPSA e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, FAPEAM. Desenvolvimento: As oficinas foram realizadas durante uma semana, do mês de janeiro DE 2020, no período integral em uma escola municipal da própria comunidade. Participaram da oficina nove (9) agentes comunitários de saúde, um (1) agente de endemias e duas (2) pesquisadoras. A oficina foi dividida em quatro (4) momentos. O primeiro momento foi um registro de ideias, solicitando aos participantes reflexões sobre como a comunidade solucionavam os problemas de saúde com/sem necessidade de deslocamento para o município de referência - Parintins. No segundo momento, os participantes se dividiram em três (3) grupos, onde cada um recebeu um conjunto de materiais: papel 40kg, caixa de lápis de cor, jogo de pincéis, lápis e borracha. Em seguida cada grupo teve que desenhar o mapa do território onde desenvolviam seu trabalho, destacando características geográficas, equipamentos sociais, recursos comunitários na área da saúde (agentes de saúde, benzedeiras, parteiras, curandeiros, pegadores de ossos), transporte e acesso ao serviço de saúde. Não foi estabelecido tempo de duração para as duas primeiras etapas, pois gostaríamos de evitar a dicotomia entre razão e emoção, hierarquia e poder. No terceiro momento, os grupos foram convidados a apresentar os mapas produzidos que representavam sua realidade enquanto trabalhador de saúde e comunitário. Foi um momento de compartilhamento de informações, compreensão dos fluxos da população, entendimento do papel da equipe de saúde e análise dos principais aspectos da saúde no território. Por último, uma reflexão e discussão sobre a importância da construção dos mapas para o trabalho do Agente Comunitário de Saúde. Resultado: O processo de construção do mapa oportunizou a visibilidade sobre o território, algo além do simples espaço geográfico, como aspectos ambientais, sociais e culturais foram destaques durante as narrativas dos profissionais. Foram identificadas parteiras tradicionais e puxadores de ossos que contribuem no cuidado em saúde ou doença na comunidade. Muitos relataram o potencial da metodologia, pois tiveram a oportunidade de conhecer outras áreas da saúde, diferenciando do imaginável, como expressa a fala do Jaçanã* “Assim, acho que a primeira coisa que a gente aprendeu em fazer o mapa foi que a gente conhece cada micro área de cada ACS. Então, a gente fica mais conhecendo onde tem, no caso, parteira, pegador de ossos, diabético, hipertenso, fica assim conhecendo o que tem na sua área, no mapeamento, até mesmo o percurso”. Evidenciaram o processo do trabalho coletivo, desenvolvido em harmonia durante o trabalho em grupo, como relatado por Boto Tucuxi* “Nós da Unidade Ilarina Reis, tem muito esse lado de viver bem, em conjunto, uma família. A gente se trata como uma família”. A criatividade foi surpresa nos mapas, que identificou grandiosos artistas, acrescentou Nascente do Rio* “Eu me surpreendi com meus próprios colegas. Eu percebi que nós temos grandes artistas em atividade e aqui onde ninguém acertava (apontou para os mapas), eu de olhos fechados conheço”. Discussão: A metodologia participativa facilita os processos de construção do conhecimento e empodera os sujeitos na tomada de decisão, como na micropolítica da gestão. Os Agentes Comunitários de Saúde, em sua respectiva micro área, fazem a gestão do cuidado a partir do conhecimento dos seus territórios. Os mapas mostraram que as características do território líquido permeiam o acesso à saúde pelos rios, furos e igarapés fazem parte da dinâmica do cuidado. Optamos por utilizar o mapa falante por propor um espaço de discussão coletiva, onde a experiência vivenciada é evidenciada na produção de um material artístico, nesse caso o mapa do território onde os ACS desenvolvem seu trabalho. O mapa falante é uma metodologia utilizada também para analisar espaços geográficos, mas não exclui o entendimento do território com realidades especificas vidas singulares e que estão em constante transformação. Mostrou-se um instrumento capaz de estimular os profissionais a desenvolver um olhar crítico sobre o uso do território na produção do cuidado em saúde, considerando aspectos culturais e ambientais. A forma que os serviços de saúde organizam seu espaço impõem limites dentro de uma determinada área geográfica, que durante a técnica os profissionais comprovaram que a área de abrangência que desenvolvem o trabalho ultrapassam tais limites. Considerações finais: O território é influenciado pelo ciclo dos rios que contribui para a aproximação ou distanciamento dependendo da época do ano.  Ao mostrar o ponto de vista de cada profissional, nos possibilitou um saber compartilhado sobre a saúde na Amazônia, indicando políticas públicas que atendam às necessidades dos profissionais e as singularidades do território. O pensamento sobre o coletivo após a vivência da oficina nos provou que não se trata de um mero agrupamento de pessoas, mas em seres individualizados que compõem um grupo, com trajetórias e vivências que devem ser respeitadas e empoderadas levando em consideração seus conhecimentos e falas na construção do coletivo. O que nos permite vivenciar o coletivo respeitando as individualidades e como se relacionam com o todo. A humildade cultural, categoria da abordagem participativa, nos alerta para uma tratamento das pessoas de forma equitativa, buscando construir relações horizontais.* Nome fictício para preservar a Identidade. 

10329 ENTRE PONTES, TRAVESSIAS E ENCRUZILHADAS: CORPOS EM TENSÃO, INVENTANDO RESISTÊNCIAS E EXISTÊNCIAS RIZOMÁTICAS.
Valéria Monteiro Mendes, Laura Camargo Macruz Feuerwerker, Gal Martins, Flávia Rosa, Adriana Paixão, Débora Marçal, Priscila Obaci

ENTRE PONTES, TRAVESSIAS E ENCRUZILHADAS: CORPOS EM TENSÃO, INVENTANDO RESISTÊNCIAS E EXISTÊNCIAS RIZOMÁTICAS.

Autores: Valéria Monteiro Mendes, Laura Camargo Macruz Feuerwerker, Gal Martins, Flávia Rosa, Adriana Paixão, Débora Marçal, Priscila Obaci

Apresentação: Tecer uma cartografia é produzir mundos com as existências que encontramos no caminho. Neste encontro vamos experimentando um conjunto de travessias que abrem possibilidades para nos ocuparmos de nossa existência e de uma multidão de outras. Foi esta experiência que vivenciei na construção de pesquisa de doutorado em saúde pública, por meio da qual segui ao encontro da produção micropolítica de modos de existir, ocupada pela questão: o que vem de fora e a saúde não enxerga? Produzir minha caminhada cartográfica decorreu de outras travessias que vivenciei como pesquisadora do Observatório de Políticas e Cuidado em Saúde, que reconhece a relação entre o agir micropolítico dos encontros e a constituição das existências em sua singularidade – pesquisadores in-mundo. Desenvolvimento/Resultado: Considerando as recentes visibilidades produzidas nestas caminhadas cartográficas no Observatório, percebendo que a construção dos encontros no campo da saúde, incluindo o processo de produção de políticas, de modo geral, pouco dialoga com os planos que compõem o viver, ganhou corpo em mim o interesse de construir aproximações com um campo de produções que se dá a partir daquilo que é experienciado de modo vivo por existencias que se ocupam e são ocupadas por travessias, tensões, territorialidades e encruzilhadas de seus e de outros viveres. Assim, caminhei em busca do que era fabricado pelas existências que habitam o Jardim São Luiz, Jardim Ângela e Capão Redondo, zona sul do município de São Paulo, como possibilidade de construir encontros com um campo de produções que provoca outros modos de pensar-agir pela fabricação de um arrastão de dobras, de respiros, de encontros e de possibilidades de experimentação de modos não neoliberais de existir, que incluem a arte e a cultura. Tomando como ponto de partida o Sarau da Cooperifa, movimento que há 18 anos vem contribuindo para o espraiamento da literatura periférica na zona sul e para além desta, segui por diferentes caminhos, habitando e sendo habitada por outros solos, fronteiras, pontes, encruzilhadas. Um caminhar a muitos corpos iniciado com minha orientadora e posteriormente vivido intensamente pela presença de vários companheiros do grupo de pesquisa e com as existências que cultivam este rizoma de produções artísticas. Partindo do pressuposto de que “método é o encontro”; “[o] resto são ferramentas”, assumi diferentes instrumentos (observação, conversas, registro de imagens e vídeos) e no caminhar aconteceram outras ferramentas, como a composição com os participantes da pesquisa de escritas e de diferentes movimentações na universidade, incluindo um encontro regional da rede unida. Assim, partilharemos alguns caminhos produzidos pelo encontro com alguns habitantes do território, mulheres em seus fazeres artísticos, considerando suas questões e invenções. A primeira foi a que conheci na chegada ao Sarau da Cooperifa e que me ajudou nos primeiros passos de minha caminhada rumo a um quilombo cultural da região, a Casa Popular de Cultura de M’Boi Mirim. No encontro com uma poesia de Cora Coralina em uma instituição para cegos, esta existência foi habitada por novas visões e audições e neste processo passou a integrar um centro de convivência da região, onde conheceu a profissional que em 1996 desenvolveu um grupo para senhoras na referida Casa de Cultura, que ainda coordena. Sobre o grupo, cabe destacar que sua construção resultou do compartilhamento das experiências, histórias, saberes e necessidades de suas integrantes, tendo sido incorporadas as danças brasileiras em 2003. Desde 2009 é conduzido por uma professora com tal formação e moradora da região. A interação com aquela existência permitiu entender que a cada ciranda dançada com o grupo e a cada poesia por ela recitada no Sarau da Cooperifa, abrem-se possibilidades para a invenção de um outro modo de se produzir na vida, que têm sido pontes para a ampliação de sua rede de conexões e para sua chegada a diferentes espaços da cidade e de fora desta, onde estão sendo constituído novos encontros e novas relações. Pela aproximação com a Casa de Cultura que, ao ser fundada em 1984 pela comunidade e movimentos sociais, se tornou o primeiro espaço cultural da região com gestão comunitária, tornando-se referência para outas Casas, conheci muitas existências e seus coletivos que, de diferentes modos, seguem defendendo este espaço, junto com outros integrantes deste, contra as permanentes tentativas de seu desmonte. Entre estas, a Cia Capulanas de Artes Negra, composta por quatro mulheres habitantes da zona sul que há 12 anos tematizam um conjunto de questões do feminino no processo de construção de sua negritude, com base em um fazer artístico que tensiona as heranças e lugares pré-determinados, decorrentes de nossa cultura escravocrata e machista, no tocante aos espaços para as mulheres na arte. Suas produções ancoram-se na ressignificação de elementos religiosos para o contexto do espetáculo urbano, privilegiando o cultivo da memória e ancestralidade africanas e dos corpos negros da diáspora conectada a elementos simbólicos em suas dimensões culturais e filosóficas. Neste processo, ser uma Capulana é incorporar o pressuposto da liberdade para cuidar dos seus e de um nós, recriando maneiras de cuidado, beleza e liberdade, o que vem possibilitando um trabalho de fortalecimento de suas existências e de outras mulheres negras no espaço físico da Cia e para além deste – uma produção interminável e insurgente em que vida e obra se misturam. Outra mulher que encontrei, cujo viver também se mistura à defesa da Casa de Cultura, foi a idealizadora da Cia Sansacroma de dança contemporânea e da metodologia da dança da indignação, conforme ela enuncia, uma materialidade poética da qual exprime, sobrevive e exorciza opressões em direção à cultura da justiça. Proposição realizada há 16 anos que decorreu de uma urgente necessidade de investigação das questões que movem muitas existências por meio de poética e estética em travessia a partir dos lugares de memória e ancestralidade. Como caminho para estar novamente em cena, decorreu a idealização da coletiva de dança Zona Agbara, munida da força e da potência que o termo enseja, cujas produções buscam dar visibilidade e valorizar o fazer artístico de mulheres negras e gordas na perspectiva de uma afirmação estética, social e geográfica. Assim, estas existências vem demarcando outras zonas de convivência e de permanência para tantos corpos, especialmente o da mulher negra, ao colocarem em cena um conjunto de tensões que os atravessa, como feminismo negro, gordofobia, padrão de beleza, estética, afetividade, identidade de gênero, religiosidade, racismo, encarceramento feminino e trabalho. As linhas do vivido como ativadoras de processos artísticos para a criação de modos de estar no mundo. Considerações finais: Uma caminhada sem rotas pré-estabelecidas. Uma caminhada vivida no fluxo dos encontros, que provocou diferentes travessias com as quais vivi e construí percepções sobre as questões que compõem as poéticas de tantas existências, tais como destas mulheres-multidão. Corpos-pontes que seguem na presença, na urgência, na persistência, inventando modos de defender suas vidas e tantas outras historicamente invisibilizadas e silenciadas. Das encruzilhadas que habitam o existir. Sem finalizar, trago uma palavra com a qual me encontrei neste processo, termo que explicita o sentido das produções que vivi e com as quais habitamos um mesmo campo de batalhas por meio de diferentes arranjos na produção de possíveis: Ubuntu – “Eu sou porque nós somos!”.