238: A vida nua: rua e cuidado
Ativador: A definir
Data: 01/06/2018    Local: FCA 01 Sala 03 - Araça-Boi    Horário: 10:30 - 12:30
ID Título do Trabalho/Autores
3925 A PRODUÇÃO DE CUIDADO NOS SERVIÇOS DE CONSULTÓRIOS NA RUA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: BREVES REFLEXÕES SOBRE O MODELO DE ATENÇÃO
Gilney Costa, Patricia Constantino, Patricia Constantino, Miriam Schenker, Miriam Schenker

A PRODUÇÃO DE CUIDADO NOS SERVIÇOS DE CONSULTÓRIOS NA RUA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: BREVES REFLEXÕES SOBRE O MODELO DE ATENÇÃO

Autores: Gilney Costa, Patricia Constantino, Patricia Constantino, Miriam Schenker, Miriam Schenker

APRESENTAÇÃO: A partir de uma pesquisa empírica intitulada “Os sentidos construídos por profissionais de saúde inseridos em equipes de Consultórios na Rua da cidade do Rio de Janeiro sobre o consumo de crack por mulheres”, problematizamos a formação das equipes de consultórios na rua na cidade do Rio de Janeiro e o seu processo de trabalho, especialmente com relação às mulheres que fazem uso de crack e outras drogas. Partimos do pressuposto de que a análise das práticas de saúde, da formação das equipes e dos processos de trabalho informam sobre (a) a política de recursos humanos para o setor saúde, (b) a institucionalidade da Política, e, sobretudo, (c) as prioridades da agenda.   DESENVOLVIMENTO: Como prática de saúde pública, o Consultório na Rua (CnaR) surge como uma tentativa de produção de vida e cuidado integral, equânime e territorializado, compreendendo o espaço da rua como lócus privilegiado de sua praxe. Como política de saúde, ele se configura como um equipamento de gestão, controle e redução de riscos e vulnerabilidade daquelas(es) que usam a rua para consumir, ou não, drogas. O CnaR possui como marco regulatório a Portaria nº. 122/2011, do Ministério da Saúde, que o define como “uma proposta que busca ampliar o acesso da população de rua e ofertar, de maneira mais oportuna, atenção integral à saúde, por meio das equipes de serviços de atenção básica”. Há diferentes possibilidades de organização das equipes. Para responder à pergunta que balizou a produção desse estudo: como estão organizadas as práticas de cuidado e as equipes de CnaR no Rio de Janeiro?, nos utilizamos da abordagem qualitativa com suporte teórico metodológico das práticas discursivas, ancorada na perspectiva da análise de discurso francesa. Nesse contexto, o discurso produz aquilo sobre o qual fala, onde a linguagem é, ao mesmo tempo, verbal (oral, escrita, gráfica ou imagética) e não verbal (toque, olhar, suspiro). Trata-se, portanto, de uma abordagem que reconhece a produção de sentidos como um fazer cotidiano, fundamentalmente, coletivo, histórico e relacional, individual e social. Para a produção de dados trabalhamos com duas técnicas qualitativas distintas: o grupo focal e a observação participante, restrita aos momentos de realização dos grupos. Os grupos foram gravados, transcritos na íntegra e analisados em profundidade de acordo com os aportes teóricos e metodológicos que fundamentaram o estudo. O estudo seguiu os preceitos éticos preconizados pela resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.   RESULTADOS:   Participaram da pesquisa 25 profissionais de saúde de quatro das cinco equipes de CnaR que atuam em 3 grandes territórios do município do Rio de Janeiro. Essas equipes são classificadas como de modalidade III, isto é, possuem ao menos um profissional da medicina e pelo menos três profissionais de diferentes campos de conhecimento, além dos agentes sociais. Dois desses territórios dizem respeito a conjuntos de favela que historicamente marcados por incursões policiais, ausência do Estado de direito e disputas entre diferentes facções do tráfico e milícia. O terceiro território possui projetos de revitalização urbana dada a sua importância para a economia da cidade. Respectivamente, esses territórios foram denominados de Caatinga, Agreste e Mata Atlântica. Esses contextos de violência, violação de direitos, exceção mas também de solidariedade, condicionam as práticas de cuidado e ganham importância na produção discursiva dos profissionais. Assim, enquanto, no território Caatinga sobressaem os efeitos da violência, a pouca presença do Estado, e como isso interfere na rotina da equipe, no Agreste, ganha destaque os sentidos sobre a maternidade das mulheres que fazem uso de crack e os desafios colocados às práticas profissionais. Já na Mata Atlântica, os discursos se organizam em torno dos entraves da articulação da rede de cuidados aos usuários de crack, com destaque para à garantia do direito à saúde. Além disso, os profissionais se veem desafiados a produzir práticas de cuidado em saúde na fronteira entre as liberdades individuais e os direitos coletivos. No caso das mulheres usuárias dos serviços de CnaR a maternidade torna essa tensão ainda mais dramática, a partir de questões relativas aos direitos da criança e/ou da mãe usuária de SPA em situação de rua. A análise dos discursos mostrou que quando as equipes de CnaR começaram a se formar tanto os profissionais quanto a própria gestão tinham pouco conhecimento sobre o serviço e o seu modus operandi e que foi no compartilhamento do cotidiano que as especificidades do CnaR foi se desenhando. No município do Rio de Janeiro, as equipes se organizam a partir de arranjos multiprofissionais, todavia, por si só ela não é garantia de “resolutividade” e menos ainda de integralidade no cuidado. A ênfase que é dada para composição de equipes para atuar em territórios importantes para o turismo em detrimento de outros de ‘menor valor’, aponta para a baixa institucionalidade da política. No momento da pesquisa, por exemplo, havia territórios com quatorze profissionais e outro com apenas três. É importante ressaltar que o CnaR, como um dispositivo inserido na agenda da política de atenção básica à saúde, apareceu nos discursos dos profissionais, como dispositivo cuja lógica da organização do processo de trabalho favorece a superação da racionalidade ‘das caixinhas’, isto é, a fragmentação da atenção à saúde em linhas de cuidado para uma perspectiva mais coletiva e complexa, inclusive dos fatores que levam uma pessoa a estar em situação de rua e/ou fazer uso abusivo de uma SPA. Um aspecto das equipes de CnaR no Rio de Janeiro que se distancia da estratégia saúde da família é não ter o CEP nem o CPF como pré-requisito do acesso a saúde, o que para muitos profissionais é simbolizado como uma radicalização do direito à saúde, fundamental para o exercício de cidadania das pessoas que fazem uso de SPA e/ou em situação de rua. Os profissionais que compõem as equipes de CnaR no Município vivenciaram diferentes processos seletivos e recrutamento: indicação, convites, processos seletivos para determinado serviço e mais tarde realocados em equipes de CnaR. Os discursos sinalizavam valorização do ingresso nas equipes através de processo seletivo, correntemente referido como ‘concurso’, ao passo que a indicação tendeu a ser vista com menos valor. Há que se dizer ainda, que o modelo de gestão implementado no Município, optou por organizar as equipes de CnaR a partir de contratos de gestão com diferentes Organizações Sociais (OSS), o que segundo os profissionais, repercute no desenho dos tamanhos das equipes, na prioridade da agenda, no financiamento, bem como na precarização das condições e dos vínculos trabalhistas.   CONSIDERAÇÕES FINAIS: Ao “dar voz” aos profissionais de saúde de CnaR, esse estudo põe em evidência desafios e perspectivas que estão colocados à construção de um modelo de atenção à saúde da população em situação de rua que possa ser efetivamente comprometido com a valorização da cidadania dessa população. Em que pese a tônica da integralidade no cuidado faz-se necessário: (a) desprecarização dos vínculos trabalhistas; (b) maior investimento na educação permanente; (c) incorporação das discussões de gênero nas equipes, (d) articulação da rede de cuidados, (e) criação dos abrigos de famílias.

5193 NA RUA E DOENTE: E AGORA? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE SAÚDE E DOENÇA DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA.
Aguiar Gomes Maria José, Rolim Barbosa Leonardo, Gleriano Souza Josue, Pinto Ferreiro Rosa Maria, Pereira Amador Luiz Alberto

NA RUA E DOENTE: E AGORA? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE SAÚDE E DOENÇA DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA.

Autores: Aguiar Gomes Maria José, Rolim Barbosa Leonardo, Gleriano Souza Josue, Pinto Ferreiro Rosa Maria, Pereira Amador Luiz Alberto

APRESENTAÇÃO: Muitas são as nomenclaturas que variam de uma região a outra do país, que pessoas em situação de rua recebem devido as suas condições sociais, como: trecheiros, migrantes, maloqueiros, mendigos, pedintes, nóias, pedreiros, entre outras. Em todas essas “definições sociais”, atraem sobre si ainda a idéia de que estão nas ruas porque querem. Em São Paulo em 1991, foi realizada uma pesquisa com essa população em que outros termos foram utilizados para classificá-los, surgindo as seguintes distinções: “ficar na rua – circunstancialmente”, “estar na rua – recentemente” e “ser da rua – permanentemente”. O fato é que as pesquisas pouco mostram as “reais circunstâncias”, o período do “recentemente”, e quem atribui o “permanente” nas ruas, se o sujeito que está em condição de rua ou quem analisa os números da pesquisa. A visão da sociedade pouco visualiza que o fenômeno “população de rua” está diretamente relacionado a fatores econômicos, políticos com forte reflexo nas condições de saúde-doença de milhares de sujeitos, com seus direitos básicos violados diariamente. No Brasil, de dimensões continentais é importante conhecer sobre as condições e os riscos de agravos a saúde, essas pessoas possuem, e mais que isso, o impacto que essas condições podem trazer tanto na gestão quanto nas condições de saúde quando se busca o acesso aos serviços de saúde, seja por causas crônicas ou agudas, violência urbana, dependência química ou situações de urgência e emergência, daí a importância da temática em questão, quando se agrega todas os fatores determinantes e condicionantes que influenciam na saúde individual e coletiva. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: objetivou-se verificar o significado sobre saúde e doença, na visão do morador de rua da cidade de Guarujá/SP. Para melhor compreender as questões sociais implícitas no contexto da população em situação de rua, a abordagem qualitativa possui pressupostos imprescindíveis que a fundamentam. O primeiro envolve a singularidade do sujeito, que é ímpar, cada indivíduo é único e conhecê-lo significa ouvi-lo, escutá-lo, permitindo sua revelação por meio da fala, do discurso e da ação. O segundo, reconhece a importância do conhecimento da experiência social, considera as circunstâncias de suas vidas, uma vez que estas configuram um tipo de fenômeno, por isso que a narrativa oral foi fundamental na coleta de dados e análise das entrevistas desse estudo. As entrevistas foram realizadas em 01/2014 e iniciaram após aprovação pelo COMEP da Unisantos sob o nº do Parecer 505.531. Utilizou-se um instrumento para a coleta de dados entre sujeitos que utilizam os equipamentos públicos voltados para esse público, na cidade do Guarujá/SP. Por questões éticas, todos os participantes receberam nomes de pedras preciosas, por possuírem valores agregados em suas falas e experiências de vida. RESULTADOS: As representações sociais são, concomitantemente, campos socialmente estruturados que só podem ser compreendidos quando referidos às condições de sua produção e aos núcleos estruturantes da realidade social. Foram entrevistados quatro pessoas em situação de rua. Suas percepções sobre saúde e doença são muito mais do que a mera presença ou ausência de sinais e sintomas. Como veremos nas falas: Rubi compreende saúde como um conjunto de produtos sociais que variam desde a alimentação até a liberdade para realizar seus sonhos sem culpa, a despeito do que os outros irão pensar ou não: “Olha saúde é a pessoa ser limpa, é ter bom dentes, é se alimentar bem, é sabe pelo menos lê um pouco num digo muito mas pelo menos um pouco é muito bom saber lê, é... ‘tê’ uma religião que é uma coisa que eu num tenho, mas é muito bom [...] eu num tenho casa, [...]eu vou passar a ter minha casa, que é saúde pra mim, é... uma pessoa sê feliz... inte é entender a situação, e num culpa ninguém, entendeu, da situação e nem se senti culpado, que eu sou assim, eu não culpo ninguém da minha vida e nem me sinto culpada, sê tá entendendo?” Rubi relata doença física e destaca a ‘doença da alma’, que são as que mais causam dores: “Olha, doença eu já tive doença no pulmão. E essa pressão né que judia de mim, judia e eu não sinto nada sê entende?... Eu num sinto nada agora se ela baixa pra 16 minha filha eu num levanto, se vê que coisa, Deus me livre se ela abaixa. É uma doença covarde[...] como tem também doenças de pessoas que só pensam mal só deseja mal só, sei lá né, isso também é uma doença pior que tem né? [...] se agente vai falar que não é só aquela doença de corpo doença é doença de mente, de alma, né que também machuca e dói ‘pa’ caramba”. Para Quartzo, saúde é ausência de dor, disposição para trabalhar, ser bem humorado e não se irritar com os amigos: “Saúde é você ter um corpo saudável, que não dói, que você deita de noite, descansa, dorme... Você ter disposição pra você ‘trabaia’, você não se irrita a toa, não fica nervoso com os amigo, acorda de bom humor, vai ‘trabaia’ de bom humor porque não tem dor... Entendeu? Isso pra mim é saúde...”. Doença para Quartzo acontece pelo fato de ter que se esconder por ter Tuberculose, mas ele lança uma questão: e quem tem essa doença e não protege nem a si e nem aos outros? Como observamos na fala: “Essa é uma coisa ruim. A tuberculose que você tem que andar escondido... Porque ninguém senta perto de você, só senta quem entende... Quem não entende não senta perto, ai eu falo pra eles, se a pessoa tem medo de pegar tubeculose ele num anda nem de ônibus, não vai na feira livre, não anda na balsa... Porque é cheio de pessoas com tubeculose mas não usa a máscara porque tem vergonha, então é fácil de pegar...”. Para Diamante, tanto a saúde quanto a doença estão ligadas a espiritualidade: “Pra mim é a melhor coisa na vida é a saúde. É a melhor coisa que uma pessoa pode ter. Vida é saúde, primeiramente Deus, né? Sou católico, mas acho que Deus existe porque depois de Deus é a saúde da pessoa... A pessoa sem saúde e sem Deus eu acho que não é nada...”. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Esse trabalho evidenciou que as pessoas em situação de rua compreendem a saúde como um conjunto de necessidades que precisam caminhar juntas. São pessoas autônomas de suas próprias histórias, mesmo tendo seus direitos de cidadania desrespeitados diariamente. Nosso país é rico sob muitos pontos de vistas. Entretanto, cada dia mais pessoas vivem nas e das ruas, esse trabalho demonstrou essa realidade. O Brasil, que há mais de vinte anos viveu a chamada estabilidade econômica, ainda não se constitui um local de oportunidades iguais para todos os brasileiros. Muitas são as conquistas percebidas, porém, quando olhamos para as atuais circunstâncias políticas e econômicas nos deparamos com a realidade de que há muito ainda a ser feito, partindo do cumprimento de princípios básicos assegurados por lei, a cada cidadão. Educação, saúde, trabalho, moradia, transporte, lazer e oportunidades sociais são direitos de todos e dever do Estado proporcionar o acesso a eles.

5229 Produção do cuidado em saúde em tempos sombrios: habitar o desassossego evanescente que germina e pulsa nos acontecimentos que vêm da rua.
Gilson Gabriel da Silva Firmino

Produção do cuidado em saúde em tempos sombrios: habitar o desassossego evanescente que germina e pulsa nos acontecimentos que vêm da rua.

Autores: Gilson Gabriel da Silva Firmino

Conforme estamos acompanhando e vivenciando, o Brasil tem atravessado um turbulento processo de retrocessos nas políticas públicas com perspectivas de perda progressiva e aguda das conquistas de seguridade social. Após o golpe político do impeachment de 2016, assistimos uma derrocada a passos largos do Estado Democrático de Direito, corroborando assim ao exercício cotidiano de inúmeras formas de violência e opressão em várias dimensões na sociedade brasileira. Nesse contexto, a área da saúde não se encontra imune frente a essa guerra política com seus efeitos adoecedores e devastadores no campo social. Ao contrário, imbuída pelo valor do discurso científico que lhe é outorgado, emprega o uso epistêmico de tecnologias do cuidar que emanam a produção de certas práticas onde se efetivam a delimitação de territórios de existência humana, assim como almeja conduzir certos processos de subjetivação social através e sobre os corpos, os coletivos e outros modos de se levar a vida, sobretudo os da chamada população dos “vulneráveis em situação de risco”. Nesse processo produtivo, o exercício do saber/poder compõem-se como engrenagem fundamental na marcação de seus vetores sobre a população-fim, se destaca pela ação em cadeia, costurando seu sofisticado modus operandi que se desdobra em ações sobre o agir do outro, produzindo diversidade de políticas do corpo, das condutas, da vida. Com perspicácia, a saúde de forma ativa e parcial reproduz (muitas vezes de modo violento e preconceituoso...) um modelo de sociedade pelo qual estamos sobrevivendo. Enquanto um operador estatal, ela espelha nossa sociedade retroalimentando-se pelo efeito do próprio caldo cultural, reorientando o seu agir no funcionamento de suas ofertas e práticas de cuidado. Em 2011 o Consultório na Rua (CnaR) é efetivado como um equipamento de saúde integrado na atenção básica da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Em linhas gerais, o CnaR é um serviço de saúde que se destina à população em situação de rua, composto por equipe multiprofissional ampliando o atendimento integral à saúde dessa população, compartilhando o cuidado em rede com os demais serviços do SUS, tendo como norteador o eixo clínico do modelo da redução de danos. Nosso trabalho aqui almeja compartilhar uma experiência vivida na unidade de saúde Consultório na Rua de Campinas. Trata-se de uma narrativa construída a partir do acompanhamento de uma usuária de alta complexidade do SUS Campinas, numa interface com outras áreas sociais. Chamamos de alta complexidade a necessidade intensiva de cuidados da usuária, com grande potencial de uso da rede de ofertas da saúde, dentre outras. Em nosso cotidiano de trabalho, é corriqueiro sermos acionados via telefone por algum serviço de Saúde, da Assistência Social, da população em geral e ou outros. Nessas ligações, geralmente nos é solicitada a tarefa de avaliação clínica de algum(s) usuário(s) para possível intervenção, a qual geralmente priorizamos realizar no próprio local de acesso: a rua. Nessa perspectiva, recebemos um contato telefônico de um serviço itinerante da Assistência Social com as descrições a seguir. Por questões de privacidade, optamos por chamar a protagonista dessa paisagem de cuidado de Germínia. Tinha 24 anos, e nos movimentos singulares e nômades de sua história de vida, constava que, além de estar mulher em situação de rua, já havia sofrido inúmeras formas de violência, fazia uso abusivo de substância psicoativa (crack), gestante de 6 meses de gestação com registro de parto anterior realizado na rua. Estava localizada num “mocó” (expressão designada para o local onde alguns usuários de SPAs fazem o uso e deixam alguns pertences) numa região próxima a nossa base de apoio. Em relação a família, sabia-se que a mãe possuía algum transtorno mental com várias internações psiquiátricas numa cidade vizinha e não mantinha contato. Seu pai constituiu outra família, também sem aproximação. De maneira mais próxima, só restava uma tia com a qual eventualmente mantinha algum contato. Nesse contexto, fomos realizando aproximação, mantendo contato frequente, produzindo agenciamento nos encontros que se delineavam numa multiplicidade de pequenos acontecimentos. Nestes encontros, entramos em contato com outras figuras de Germínia, tais como: as que apresentavam processos de subjetivação psicóticos (alucinações visuais e auditivas) mesmo sem o uso de crack e há algum tempo; realizava um uso de crack solitário (meio de uso incomum para quem habita as ruas); se nomeava como homossexual; realizava programas se prostituindo frequentemente de forma insegura; andava pelas imediações do bairro simulando ser surda-muda para estrategicamente ganhar doações e assim realizar uma forma de manutenção de sua existência, dentre outras. Contudo o tempo soberano de si nos colocava na parede diante da urgência que insistia em vir à cena principal: o pré-natal e o parto. Se numa suposta condição de normalidade a maternidade se configura como fonte de tensões e polêmicas, imaginem em situações como essa que se manifestava sem pedir licença, colocando nossos saberes profissionais em xeque, geralmente capturados e enclausurados em seus próprios territórios de produção de verdade... Tentamos várias inserções em abrigos da Assistência Social, unidades de saúde tais como CAPS, CAPS AD, CASA DA GESTANTE, todas sem sucesso. Segundo Germínia, a fissura em usar crack era maior. Para agravar nossa angústia “curadora”, Germínia ficou um tempo desaparecida, e o transcorrer do tempo precipitava o nossa angústia em fracassar. Entretanto, como fazemos costumeiramente, não desistimos, insistimos! Iniciamos intenso processo de busca ativa pelos territórios-germínicos de circulação urbana para, caso a encontrássemos, tentarmos negociar com ela possibilidades possíveis de intervenção em saúde. Esse movimento coletivo perdurou por alguns longos dias, quando, finalmente ao encontrá-la, fomos germinicamente surpreendidos: Germínia nos solicita internação psiquiátrica, pois, em sua avaliação era necessário “parar um pouco de usar crack”. Norteados por esse acontecimento, assim o fizemos, mas não sem antes desencadearmos intenso processo de debate e disputa interna em nossa equipe diante desse pedido, o que gerou discussões, tensões, conflitos e mesmo inimizades provisórias entre os diversos profissionais que compunham a gestão desse processo. Coisas da democracia... No início da internação, a equipe da enfermaria psiquiátrica nos chamou para discussão do caso e construção do projeto terapêutico singular, pois Germínia precocemente já estava pedindo alta hospitalar, mesmo às vésperas do parto. Na reunião, fizemos questão de incluí-la nesse processo decisório de sua vida, o que para nós é um elemento crucial na construção de cuidado em saúde mais participativo e cidadão, sem chancelar cegamente a opinião da usuária, mas sim tomá-la como ponto-chave no processo de produção de atos de saúde e de cuidado. Assim, mesmo contrariada, Germínia aceita se manter internada dizendo necessitar de uma medicação mais forte, pois a fissura de uso crack aumentava lhe trazendo uma série de alterações de comportamento indesejáveis em várias dimensões do seu cotidiano. A internação psiquiátrica se manteve até o parto cesaria que ocorreu sem problemas. A guarda da criança foi extendida à família, num trabalho realizado em parceria entre a equipe do CnaR, Defensoria Pública e Conselho Tutelar. Quanto a Germínia, soubemos que ela retomou proximidade familiar assim como do crack, e não deu sequência ao tratamento. Não a acessamos, mas apostamos que ela possa estar germinando seus processos vitais, extramorais e singulares em outras paisagens existenciais rueiras. Confrontamos visceralmente a “fábrica de vidas matáveis” daqueles que acreditam que nem todos têm direito à vida. Trabalho de uma militância micropolítica produtora de visibilidade social, esta talvez seja uma das valiosas lições ensinada pela nômade Germínia...

5327 Redução de Danos uma prática ético-política nas vivências com a População em Situação de Rua
Elissandra Siqueira da Silva

Redução de Danos uma prática ético-política nas vivências com a População em Situação de Rua

Autores: Elissandra Siqueira da Silva

Neste trabalho pretende-se relatar vivências que forjaram possibilidades de agir no território de experiências, buscando assim  resgatar de alguma forma a contribuição da Redução de Danos (RD) para que chegássemos aos territórios das pessoas em situação de rua (PSR) e ali pudéssemos permanecer.Entendendo que alguns conceitos colam no corpo de tal forma que transcendem o seu uso como ferramenta e incorporam-se à vida em todas as suas dimensões. Desenham a ética de vida que desejamos, buscamos e constituímos no dia a dia. Podemos dizer que a Redução de Danos é um modo de ver e viver o mundo, mais do que um conceito ou técnica, estratégia ou diretriz. Nela, o que nos interessa são as relações que as pessoas estabelecem, na singularidade de cada uma e em suas possibilidades de potência de vida ou morte.A experiência com a Redução de Danos permite entender de uma forma ainda mais ampla e próxima a complexidade e diversidade da vida, principalmente, nas situações de marginalidade, discriminação e preconceito vividas por pessoas entendidas como “minorias”, mas também, por outro lado, toda a potência, solidariedade e criatividade que há nelas. Quando falamos das pessoas em situação de rua algo se coloca como necessidade: a defesa da vida contra a produção de morte, formatada nas prescrições morais que almejam retirar as pessoas da rua, adequá-las aos padrões de morar da maior parte da população, ficar abstinente do uso de drogas, voltar para família, conseguir emprego fixo, entre outras. Não que estas questões não possam ser desejáveis pelas pessoas que vivem na rua, porém a questão é o modo como são ofertadas, por vezes de forma violenta e descontextualizadas das necessidades das PSR.Desde o seu início, mesmo com um caráter inicialmente mais preventivista, a RD se mostrou uma prática mais humanizada, com referência nos Direitos Humanos. Preocupada em orientar e prevenir sobre os possíveis danos causados pelo uso de drogas, o foco da RD é o sujeito e não a sua “prática ilegal ou pecaminosa”, o que possibilitava e gerava mudanças na relação de uso desses sujeitos. Este modo de operar da RD já possibilitava a abordagem às PSR naquela época, pois ao trabalhar em campo, encontrava nas cenas de uso, pessoas em situação de rua independentemente de estarem em uso de drogas ou não. Talvez possamos dizer que seja um dos primeiros “serviços” que acessam a PSR no Brasil. Referindo-se à atenção a PSR que usam drogas, Marcelo Mayora (2016) afirma que a primeira tarefa que se coloca para quem deseja compreender a utilização de crack e/ou outras drogas por pessoas em situação de rua é relativizar a importância da substância. Encontramos fundamento para esta afirmação na Redução de Danos, onde, dentre outros aspectos, alerta-se para necessidade de se questionar a centralidade da substância e a noção de “dependência química” – que remete a uma dependência provocada apenas pela substância.As experiências de Redução de Danos contribuíram para revigorar as práticas de atenção em saúde. Podemos destacar: o reconhecimento e valorização da singularidade de todos os sujeitos como ponto de partida para o encontro que acontece no território e realização da escuta e estabelecimento de vínculo como aprendizagens importantes dos itinerários da RD. Uma das questões destacadas pela Redução de Danos é a dimensão ética das práticas de cuidado, que está presente no encontro entre trabalhador (ou outro) e usuário e que diz respeito às formas como se dará este cuidado.Podemos dizer que o cuidado se dá no encontro, muitas vezes em plena cena de uso, podendo ser durante ou logo após, com o sujeito ainda sob seu efeito. O uso não é impeditivo para a aproximação: como em qualquer outra situação, há uma forma de chegar. Por isso, temos o campo, como território existencial do sujeito, lugar de olhar,escutar e sentir, captar os sinais nessa relação substância-sujeito-contexto. “Entrar em um território existencial já é modificá-lo fazendo parte dele, pois ele é esta expressividade sempre provisória que a tudo capta, sensível e determinante na constituição de seus personagens” (MACERATA, SOARES & RAMOS, 2014, p. 923).Importante destacar que, quando o encontro entre trabalhador e usuário se dá no território de vida do sujeito, em terreno desconhecido para o trabalhador, é este que está vulnerável no momento. Já no ambiente institucional, o vulnerável é o usuário. Na rua, se inverte a balança de poder que, habitualmente, pesa para o lado do trabalhador, pois o serviço é sempre o local seguro, conhecido e com as regras cotidianas do trabalho e as normativas da gestão. A abertura ao desconhecido e à vulnerabilidade não é umaconstante nos serviços e equipes de saúde.A RD é um processo educativo permanente, em constante movimento. Talvez possamos dizer que a RD busca desconstruir a cultura instituída, por partir da ideia de mover o pensamento, aprender com o desejo e ter práticas libertadoras. Há uma frase muito usada entre os redutores e redutoras de danos, digamos que seja uma máxima da RD, que resume o caminho trilhado de seu fazer: “entre o ideal e o real existe o possível”.Nas idas para a Praça Garibaldi, nos encontros que foram constituindo o grupo Me Apoia Aí um pensamento acompanhava permanentemente uma parte dos trabalhadores. A ideia de que cada encontro poderia ser totalmente diferente do que se planejava e de que seria importante acolher essa diferença, esse possível. Em torno deste impasse que se apresentava nas diferentes formas de lidar com a diferença nas idas à Praça Garibaldi surgia um importante marcador metodológico e ético do trabalho que acontecia. Como lidar com a questão do uso de drogas, uma vez que as intensidades dos usos dos participantes atravessavam a experiência das rodas de conversa e o trabalho do grupo? As repetidas experiências institucionais dos trabalhadores das políticas públicas engessam os modos de se relacionar com essas intensidades e coíbem a produção do novo nesses encontros nas cenas de uso.A trajetória com a redução de danos, por outro lado, parece ser um ponto facilitador para suportar essa intensidade dos usos e dar espaço a ela. Não por acaso a redução de danos é diretriz do cuidado das equipes que trabalham com as PSR. Destacamos aqui a elaboração da Equipe Pop Rua do RJ, que nos atenta para a importância de se saber, entender e trabalhar com os conceitos de saúde construídos pelas próprias pessoas em situação de rua: A redução de danos (RD) é não só um dispositivo, mas, sobretudo, um paradigma do cuidado. A RD foca o sujeito e seus processos de vida e não a substância psicoativa de que se faz uso ou abuso. O uso de drogas pode ser ou não um problema de saúde (EQUIPE POP RUA, 2002, p. 15).Assim a RD é situada como um paradigma do cuidado, numa perspectiva ético-política. Entendemos a redução de danos como um instrumental teórico e prático fundamental para o trabalho com as pessoas em situação de rua, que se deseja feito de relações horizontalizadas, composto por diferentes saberes e, acima de tudo, com respeito e afirmação das diferentes formas de viver, buscando potência de vida em todos os encontros com a rua e as pessoas que nela vivem.